O início de tudo
Eu era voluntária em uma escola estadual de Mogi das Cruzes com foco em educação de jovens e adultos. Meu papel era dar suporte às pessoas que haviam tentado suicídio ou demonstravam este interesse. Comecei em outra unidade falando sobre automutilação e bullying e aos poucos este universo do sofrer silencioso foi se apresentando de modo consistente e importante. Em parceria com a diretora Mônica do CEEJA local, uma pessoa incrível que está sempre procurando a melhor forma de oferecer educação pública de qualidade para todos, fui criando espaços de escuta para que estas pessoas partilhassem suas dificuldades e encontrassem acolhimento.
Tudo corria bem com encontros presenciais semanais até 2020. De repente, pandemia. Ficamos assustados e como tantos outros tentamos às pressas compreender o que estava acontecendo. De uma hora para a outra os planos foram suspensos e cada um tentou se proteger como podia. Passaram-se os primeiros quinze dias, os outros quinze e nenhuma perspectiva se fazia perceber...
Chegamos em maio de 2020 com a certeza de que não podíamos simplesmente parar. As pessoas estavam assustadas e aquelas que já eram nosso foco deveriam estar ainda mais carentes de acolhimento. Pensamos, eu e a diretora, que talvez fazer uns vídeos sobre as questões emocionais do momento fosse um suporte mínimo aos profissionais da educação que estavam desamparados. Eles confortados, podiam ajudar os demais de alguma forma.
Construindo juntos
O ponto de partida seria a escolha dos temas. Não é possível acolher partindo apenas do meu lugar de conforto e segurança, então houve uma coleta de temas em um grupo de whatsapp onde as diretoras interagiam. Voltaram muitas angústias, muitas inseguranças e medos. Gravei um vídeo inicial, assim sem pretensão. Liguei o celular e falei sobre a solidão. De diversos temas que foram colhidos, a solidão era sem dúvida aquele que mais se repetia. Estávamos todos assustados, perdidos e principalmente, solitários.
Vídeo pronto, enviei para a minha parceira incansável avaliar e ela o replicou para seus grupos de educadores e diretores. Fiz o mesmo com mais alguns temas e para a minha surpresa, o retorno foi imediato e significativo. Começamos a receber comentários e áudios lindos, falando sobre como aqueles minutos eram importantes para quem assistia os vídeos e como isso acalentava o coração de cada um. Diariamente o processo se repetia e durante algumas semanas mantivemos essa forma de compartilhamento. Parecia ser o caminho certo para chegar às pessoas que realmente precisavam.
Não demorou muito, acredito que umas três ou quatro semanas e começaram os pedidos para que eu compartilhasse os conteúdos em alguma rede social. Os argumentos eram que desta forma, mais pessoas poderiam ser contempladas e então avaliamos qual seria a melhor ferramenta. Como a grande maioria dos “espectadores” estava mais ambientada ao Facebook, criamos nosso espaço lá. O processo foi construído todo com este movimento de identificar uma demanda, consultar o todo, colher as sugestões, sistematizar e viabilizar as soluções.
Assim também foi o nome da nossa rede. Inicialmente éramos apenas uma rede de profissionais da educação que estava tentando se cuidar e manter o mínimo afeto e acolhimento possível em um cenário de inseguranças. Nos vídeos eu sempre falava que éramos uma rede de pessoas tentando algo bom, uma rede de luz tentando clarear os caminhos dos demais, sempre uma rede. Até que vieram sugestões de nomes para nossa página no Facebook e fizemos nascer a Rede Talismã. Agora tudo fazia ainda mais sentido. Talismãs são objetos mágicos naturais que nunca perdem sua força, seu encantamento. Diferente de um amuleto que depende da fé individual de seu possuidor, o talismã irradia a magia do bem sem ressalvas. Éramos nós!
Aprimorando e crescendo
O crescimento da Rede foi incrível. Profissionais da educação começaram a compartilhar os vídeos com seus familiares e amigos, e em pouco tempo os relatos se multiplicaram. Muitas pessoas idosas nos assistiam e destacavam que aqueles minutos dos vídeos eram os mais aguardados do dia, como se fosse um abraço que espanta o que está desajeitado lá dentro. Falamos sobre solidão, medo, ansiedade, construção de novos hábitos, perspectivas ou a falta delas, autocuidado, autoconhecimento, ferramentas de desenvolvimento pessoal e até sobre gestão. Nosso espaço estava sendo lindamente construído por tantas ideias, pessoas e temas que era natural crescer e se multiplicar.
Conversávamos sobre qual o melhor tamanho dos vídeos, sobre ter convidados, sobre compartilhar materiais, sobre leituras, filmes, datas especiais, enfim, uma grande e genuína interação possibilitada pela tecnologia. Assim trilhamos cada passo do percurso, escolhendo os temas, decidindo se teríamos convidados, definindo a necessidade ou não de fazermos encontros síncronos como lives. Algumas vezes por formulários de consulta, outras vezes pela interação direta, cada etapa desta nossa Rede era construída de forma colaborativa e dialógica, como acreditamos que a boa educação deve ser.
Aumentando o abraço
Em um determinado momento, as demandas por autoconhecimento ficaram muito ressaltadas e então convidei um amigo educador, digo, educomunicador, para contribuir com a nossa Rede. Ele, o nosso Unilson, além da experiência como educador social em comunicação, trazia contribuições sobre antroposofia e outras ferramentas de facilitação de processos internos. Como especialista em metodologias ativas, tentava apoiar os profissionais da educação na (re)descoberta de novas possibilidades educativas, além das outras demandas. Sua chegada aumentou nosso abraço e trouxe contribuições importantes para todos, educadores ou não.
Próximos passos
Hoje sou psicanalista e terapeuta, porém a minha base de formação e atuação sempre foi a educação social, onde todos importam. Onde os processos respeitam o tempo e a voz de cada envolvido e onde o objetivo é a transformação coletiva de uma realidade para o bem de todos. É nesta educação que acreditamos e a pandemia nos mostrou ainda mais que a tecnologia e a comunicação são ferramentas fundamentais para o desenvolvimento da cidadania.
Nossa rede contou com gente linda de São Paulo, Acre, Venezuela, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e outros tantos lugares que, presencialmente não seríamos capazes de viabilizar. Hoje estamos nos reorganizando para que a Rede possa oferecer saúde mental e desenvolvimento integral de forma ainda mais organizada e estruturada a todos que precisam e certamente conseguiremos porque o desejo e a capacidade são coletivas. Se o medo, a distância, as angústias diante deste “novo normal” nos deixaram reclusos e solitários, a educomunicação nos uniu, nos fortaleceu e nos demonstrou ainda mais possibilidades de cuidarmos de todos com respeito, afeto e amorosidade.
Veja as publicações no Facebook da Rede Talismã.